sexta-feira, 28 de setembro de 2012

O Cruzeiro - 18 de julho de 1964

 
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Regeneração
Rachel de Queiroz
A conversa era a respeito das faladas grandes fortunas de certos políticos. E o môço (vinte e poucos anos, função técnica numa autarquia, rapaz sério), disse com convicção, na defesa do ex-Presidente:
- Mas êle não tinha precisão de roubar para ficar rico! Só a companhia X, sua protegida especial durante o govêrno, deu-lhe de presente 40% das ações!
Não sei se êsse tal caso será verdadeiro, mas a enormidade da afirmação está no fato de que, ao fazê-la, o rapaz acreditava sinceramente defender o homem da pecha de desonesto. Favorecer um grupo às custas do govêrno, receber como compensação de favores uma percentagem qualquer de ações da companhia – para êle é ato legítimo, inatacável, honesto!
Outra frase impressionante me disse um deputado estadual, numa viagem de barca de Niterói ao Rio. Discutia-se também a rápida e misteriosa riqueza dêsses homens. E o parlamentar, aceso na defesa de um dos mais falados nababos, liquidou o assunto:
- Mas êle tinha mesmo que enriquecer. Homem nenhum passa pelos cargos pelos quais êle passou – deputado, governador, ministro etc, sem fazer fortuna. É uma decorrência da carreira! Essa eu nunca esqueci: UMA DECORRÊNCIA DA CARREIRA.
Uma das palavras mais pejorativas da língua brasileira atual é crente. Crente é o boboca, o ingênuo, que acredita em trabalho, em cumprimento do dever e em honestidade. E pior ainda do que crente é o caxias, que, a exemplo do celebrado duque, pratica a disciplina, o horário, o escrúpulo profissional. E a gíria carioca ainda inventou um superlativo do caxias, que é o chatias, ou o chato crente, que é o caxias pior de todos...
Generalizou-se o conceito de que roubar do govêrno não é roubar. É um emprêgo de atividades como o comércio, a indústria ou uma profissão liberal. Aquela mãe de família do Pará, católica, de velha família dessas que se dizem tradicionais, filha e neta de homens de bem, declarava cândidamente a respeito de um sobrinho:
- O Luís era mesmo um rapaz sem juízo, quase um transviado. Mas agora se corrigiu e mudou de vida. Casou, abriu escritório de contrabando, e vai indo muito bem, graças a Deus!
Havia um antigo partido político português, no tempo da monarquia, que se chamava Regenerador. Provàvelmente, de regenerador só tinha o nome, porque isso de partidos políticos nunca procuram fazer coincidir seu nome com a realidade. Salvo o caso dos abertamente facistas e comunistas, os outros usam o nome porque acham bonito, porque tem apêlo para as massas, porque está na moda, ou seja lá por que fôr.
Mas era de um movimento regenerador que tínhamos necessidade. A Revolução, esta nossa revolução de 31 de março, não pode se limitar a ser apenas o que foi até agora – um movimento armado que prometeu a derrubada dos corruptos do poder e a instalação de govêrno decente e austero. Isso é apenas a primeira etapa. Depois tem que vir a revolução realmente regeneradora. Devolver ao País aquêle ambiente anterior a isso que aí estava. No qual trabalhar não seja burrice, ser honesto não signifique ser crente, sacrificar-se pela sua terra não seja profissão de chatias.
Ensinar a êsses meninos de hoje aquilo que aparentemente todo o mundo sabia nos primeiros tempos da República: que um homem, depois de ocupar altos cargos, não sai dêles necêssariamente rico; ao contrário, tem que sair necessàriamente pobre. Como saiu Floriano. Como morreu Deodoro. E os outros que vieram em seguida. Como saiu Café Filho, que ao ser deposto pelo golpe de 10 de novembro de 55, precisou que os amigos lhe arranjassem um modesto emprêgo numa firma particular, para que não se visse um ex-presidente passando privações!
Talvez a idéia boa fôsse explicar aos meninos como é que se recolhe o dinheiro do govêrno; como se cobrar os impostos, dinheirinho suado de cada pobre, contribuição obrigatória de cada rico. Centavo a centavo vai se juntando – e dali, só dali – se forma aquêle pecúlio público que só pode ter um destino: o uso em benefício do povo, de cujas mãos saiu.
Mostrar aos meninos o mecanismo da previdência social: os descontos mensais conrados a todos, trabalhadores, patrões, na fôlha do fim do mês – e que só pode ser aplicado aos hospitais, ao pagamento de aposentadorias, de pensões, de montepios.
Fazer prédios suntuosos com o dinheiro dos Institutos de Previdência, custear festanças, sustentar afilhados, é o mesmo que roubar o remédio do doente pobre, o leito do hospital, o feijão do aposentado. Êles entenderão, môço entende depressa.
A mocidade não está corrompida; está apenas mal encaminhada e mal esclarecida. Se todo mundo usa como verdade a impostoria, se o senso moral se subverte, se os exemplos do bem são raros e os exemplos do mal são a regra comum, como esperar que a mocidade saiba descobrir sòzinha onde é que está o certo e o direito?
Um govêrno que realize a democracia com perfeição, que tenha como base a justiça social, a verdade eleitoral, a austeridade dos servidores públicos; que incentive a honradez particular, o trabalho e o estudo, que dê valor à palavra do homem de bem; só um govêrno assim tem possibilidades de reconquistar a mocidade, convertê-la pelo exemplo, seduzi-la com as perspectivas de lideranças abertas, não aos vivos, não aos espertos, não aos acordados – mas aos crentes, aos caxias. Porque então crente e caxias terá deixado de ser nome feio.


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