domingo, 16 de fevereiro de 2020

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CRISE ECONÔMICA

Angola socorre Portugal

por Augusta Conchiglia
4 de Maio de 2012
Os estrategistas angolanos veem em Portugal a plataforma perfeita para sua internacionalização. Chegam às vezes a se comportar como conquistadores, numa atitude não desprovida de sentimento de vingançaAugusta Conchiglia
Terceira maior economia da África subsaariana, logo atrás da África do Sul e Nigéria, Angola já se vê como um país emergente.1 Dotada de importantes reservas de hidrocarbonetos, às quais se acrescentam promissoras prospecções – prolongamento geológico das riquíssimas bacias brasileiras já em exploração –, o país é um dos maiores produtores africanos do ouro negro: uma média de 1,8 milhão de barris por dia desde 2008. Graças ao sucesso da reconciliação nacional, após décadas de guerra civil,2 Angola exibe uma estabilidade política que não desagrada aos investidores estrangeiros. O mais inesperado, contudo, é que agora o país passou a ser cortejado por seu antigo colonizador, Portugal, que atravessa uma drástica série de medidas de austeridade: “O capital angolano é bem-vindo aqui!”, lançou o primeiro-ministro português Pedro Passos Coelho, quando visitava Luanda em novembro de 2011.
Se o entusiasmo da nova burguesia angolana pelo setor imobiliário da antiga metrópole já é lendário – teria até contribuído para o aumento dos preços no setor –, foi a aquisição de ações nos maiores grupos bancários e energéticos que atraiu a maior parte do capital: cerca de US$ 2 bilhões, ou 4% do total do valor em Bolsa. Na verdade, a imbricação dos bancos de ambos os países torna esse cálculo impreciso. No centro desse movimento está a companhia petrolífera angolana Sonangol, a segunda maior empresa africana em 2010, considerados todos os setores.
O movimento de capital em direção a Lisboa aumentou a partir de 2008. A Sonangol tornou-se então o acionista de referência do principal banco privado português, o Millennium BCP. A companhia financeira Santoro, de propriedade de Isabel dos Santos, primogênita do presidente angolano José Eduardo dos Santos, também está envolvida nessas operações. Desse modo, o consórcio Esperanza, formado por Santoro e Sonangol, detém 45% do grupo português Américo Amorim Energia, que por sua vez controla 33,3% da companhia petrolífera nacional portuguesa, a Galp. Ainda mais incomum, bancos privados de Luanda, com destaque para o Banco da Indústria e Comércio (BIC) e o Banco Privado Atlântico, abriram filiais em Portugal.
Em alguns anos, o panorama do setor bancário angolano foi profundamente transformado. O grupo português Espírito Santo teve nisso um papel pioneiro, estabelecendo-se em Lisboa logo após a abertura econômica de 1993 e tecendo relações estreitas com o poder. Aliás, foi por meio de uma parceria com as telecons portuguesas que a empresa de telefonia móvel Unitel, cuja propriedade majoritária é detida por Isabel dos Santos, teve uma expansão fulgurante: 6 milhões de assinantes em 2010.
Em março de 2009, durante a visita do presidente José Eduardo dos Santos a Portugal, mil empresários reunidos no Hotel Ritz de Lisboa discutiram formas de fortalecer ainda mais as relações econômicas e financeiras entre os dois países: “Nossa aposta em Portugal é real e sustentável”, garantiu Manuel Domingo Vicente, então presidente da Sonangol e apresentado como “um dos empresários mais influentes do continente”.3 Recentemente ele surgiu como provável sucessor de José Eduardo dos Santos. Na sequência da visita, um banco de investimentos – sediado em Angola – foi criado pela associação da Caixa Geral de Depósitos de Portugal com a Sonangol, a fim de facilitar o desenvolvimento de infraestrutura e indústria pesada.
Mas a crise financeira internacional freou o ímpeto dos bancos portugueses, que registraram grandes perdas, assim como seus acionistas estrangeiros. Isso não desanimou a Sonangol, que ajudou o Millennium BCP a se recapitalizar, envolvendo na operação o Banco do Brasil e um banco chinês. Muito “exposto à dívida grega”, o Millennium BCP exibe uma perda de 786 milhões de euros em 2011.
Em compensação, os resultados de suas filiais em Moçambique e Angola registram um salto de 50%. A Sonangol, cuja opacidade de sua gestão é frequentemente apontada pelo FMI, age como um Estado dentro do Estado. Em particular, constituiu um fundo soberano gerido diretamente por seu conglomerado empresarial: 22 filiais que cobrem todos os setores da economia, substituindo abertamente o governo. Sua associação com uma empresa privada chinesa, a China International Fund de Hong Kong, que em 2004 deu origem à China Sonangol, certamente acentuou a diversificação das atividades da companhia petrolífera africana. Sozinha ou com sua parceira asiática, ela está presente em muitos países africanos, na América Latina (Cuba, Equador, Venezuela) e no Oriente Médio (Iraque, Irã).
Os estrategistas angolanos veem em Portugal a plataforma perfeita para sua internacionalização. Chegam às vezes a se comportar como conquistadores, numa atitude não desprovida de sentimento de vingança. Mas os empresários portugueses tiram dessa relação diversas vantagens. Enquanto seu país enfrenta uma grave recessão, a participação no imenso canteiro de reconstrução e desenvolvimento de Angola, geralmente financiado por Luanda, é uma bênção para muitos deles.
Das 532 empresas estrangeiras presentes em Angola – que controlam 40% do PIB –, 38% são portuguesas (e 18,8% chinesas). Com 13% de desemprego em Portugal, o Eldorado angolano atrai dezenas de milhares de trabalhadores, nem sempre qualificados. Esse fenômeno não deixa de inquietar Luanda, que tem denunciado a falta de oportunidades para a juventude do país. Se em 2003 os residentes portugueses em Angola somavam 21 mil, em 2011 eles passavam de 100 mil. De acordo com os serviços consulares angolanos, o número real poderia chegar ao dobro disso. Ao mesmo tempo, cai o número de angolanos vivendo em Portugal. A esperança agora está no Sul…
Augusta Conchiglia é jornalista.

PRIVATIZAÇÃO

A nova estratégia do governo para desestatizações e desinvestimentos

por William Nozaki
11 de Fevereiro de 2020
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Os argumentos utilizados pelo governo para justificar as desestatizações e desinvestimentos seguem sendo os supostos ganhos de eficiência na gestão econômica e o combate à corrupção política. No entanto, se, em 2019 tais medidas buscavam viabilizar as metas austeras de ajuste fiscal interno, em 2020 elas também buscam responder à crescente necessidade de recursos externos, dado o déficit projetado do balanço de pagamentos. Confira novo artigo do Observatório da Economia Contemporânea.
O governo federal indicou, nesse início de ano, que pretende intensificar e acelerar seu programa de desestatizações e desinvestimentos. Em 2019 o governo levantou cerca de R$ 105,4 bilhões com privatizações e o volume executado de investimentos das estatais federais sofreu queda de 31,3%, caindo de R$ 84,8 bilhões em 2018 para R$ 58,3 bilhões em 2019.
Para 2020 a expectativa é que se alcance cerca de R$ 150 bilhões com venda de estatais, o número é aproximadamente 42% superior ao desempenho do ano passado. Além disso, a permanência da desalavancagem das principais empresas do sistema produtivo estatal deve reduzir ainda mais o nível de investimento público este ano.
Os argumentos utilizados pelo governo para justificar as desestatizações e desinvestimentos seguem sendo os supostos ganhos de eficiência na gestão econômica e o combate à corrupção política. No entanto, se, em 2019 tais medidas buscavam viabilizar as metas austeras de ajuste fiscal interno, em 2020 elas também buscam responder à crescente necessidade de recursos externos, dado o déficit projetado do balanço de pagamentos.
Tais objetivos poderiam esbarrar na decisão tomada pelo STF em 2019, segundo a qual a alienação de empresas-matrizes só pode ser realizada com autorização do parlamento e com realização de licitação. A mesma decisão, entretanto, liberou dessas exigências a venda do controle de empresas subsidiárias e controladas de empresas públicas e sociedades de economia mista. A decisão não bloqueou a venda de ativos públicos, mas produziu uma ligeira mudança na estratégia do governo para as privatizações.
Em 2019 não foram poucas as declarações de que a intenção do ministro da economia era se desfazer do maior número possível de empresas estatais, ora tomado por argumentos mais ideológicos do que políticos, ora jogando com as expectativas do mercado mais do que com os cenários exequíveis, mas sempre sinalizando a possibilidade inesperada de venda de alguma empresa estratégica. Fato é que, se, por um lado, as concessões avançaram conforme o planejado, por outro lado, o mesmo não aconteceu com as privatizações. É bem verdade que a venda de ativos públicos assumiu proporção devastadora e sem precedentes, mas o governo também enfrentou óbices políticos e de gestão que o impediram de realizar na velocidade desejada a venda, por exemplo, de empresas como EPE e EPL, além de ter recuado na venda integral da Petrobras e enfrentado atrasos na venda da Eletrobras.
De acordo com a Secretaria Especial de Desestatização, Desinvestimentos e Mercado, atualmente o governo possui 202 empresas estatais federais (46 de controle direto e 156 subsidiárias). Em 2019 o governo não concluiu a venda de nenhuma estatal de controle direto, mas avançou significativamente no desfazimento de subsidiárias, coligadas e empresas em que detinha participações, no total foram 71 ativos alienados.
Diante da decisão do STF e do balanço do que foi realizado no primeiro ano de governo nessa matéria, cabe levantar a hipótese de que para ampliar suas metas de desestatizações e desinvestimentos em 2020 o governo esteja alterando sua estratégia de ação, transitando de uma “privatização em marcha forçada”, acompanhada de mais declarações do que ações, para uma “privatização em marcha silenciosa”, dessa vez, municiada de mais ações do que declarações. Nesse sentido, são pelo menos cinco os indícios que merecem ser observados com atenção. Vejamos.
Em 2020, o governo deve intensificar a redução de sua participação acionária em diversas empresas públicas e privadas. O caso mais emblemático foi o da venda das ações que o BNDES detinha da Petrobras, por um valor de R$ 22,06 bilhões. O banco detinha cerca de 10% de participação ordinária na petrolífera brasileira, com essa operação o peso estatal na direção da Petrobras chegará ao seu menor patamar histórico, perigosos 50,3%. É curioso observar: na carteira do BNDESpar as ações da Petrobras foram as que garantiram a maior taxa interna de retorno do investimento entre 2017 e 2019, um ganho de 42,5%. Se, por um lado, tal ganho já não estava sendo tão expressivo em 2020, por outro lado, isso não justifica a venda das ações por um preço 1,57% abaixo do valor de mercado.
Vale lembrar, no final do ano passado a Caixa Econômica Federal já havia se desfeito de uma participação de 3,2% de ações ordinárias da Petrobras. A busca por celeridade nas vendas via ofertas públicas secundárias negligencia a depreciação dos preços e das condições de venda. Por exemplo, em 2019 o BNDES tentou vender suas ações do Banco do Brasil abaixo do preço de mercado, no mesmo ano a venda das ações da BR Distribuidora aconteceu sem que a Petrobras cobrasse seu prêmio pela venda do controle da subsidiária.
Mais ainda, a venda secundária das ações – do proprietário para o mercado – em nada impacta as receitas das estatais, pois tratam-se de receitas financeiras que podem até aumentar o lucro do BNDES e da CEF, implicando em mais IRPJ e distribuição de dividendos para o próprio governo federal, que, com esses recursos extraordinários ameniza parcialmente seus problemas de fluxo de caixa tributários. Aos poucos vai encolhendo o peso do Estado na fatia de ações com direito a voto na maior empresa brasileira. A expectativa é que este ano BNDES, BB e CEF juntos devem se desfazer de mais de R$ 60 bilhões em ações e participações.
Além disso, na última reunião do Fórum Econômico Mundial em Davos, o ministro da economia anunciou o início das tratativas para a adesão do Brasil ao Acordo de Compras Governamentais (GPA) da OMC, abrindo o mercado de compras públicas do país para empresas estrangeiras. Segundo o IPEA, estima-se que as compras governamentais da União movimentem cerca de R$ 324 bilhões por ano, valor em torno de 5% do PIB. O peso do sistema produtivo estatal nesse item é significativo, em 2017 Petrobras e Eletrobras foram responsáveis por R$ 211 bilhões, ou seja: de 65% das compras governamentais atreladas ao governo federal, apenas a Petrobras responde por 53% desse montante, contratando em média mais de 15 mil firmas, muitas delas nacionais. É preciso aguardar o anúncio dos detalhes do acordo, mas já é possível vislumbrar seus efeitos colaterais: redução da capacidade indutora do Estado sobre os investimentos, perda de possibilidades de articulação de uma política industrial e encolhimento do arco de ação das empresas estatais, o que redunda no seu enfraquecimento e na ampliação das possibilidades de privatização.
Mais ainda, a fim de contornar a decisão supracitada do STF sobre a nova sistemática de desestatizações e desinvestimentos, o governo e as empresas estatais tem se valido de um subterfúgio para encolher o tamanho das empresas-matrizes. Uma vez mais o exemplo é a Petrobras, em 2019 a empresa anunciou a intenção de se desfazer de 8 refinarias e seus ativos logísticos correspondentes, equivalentes a metade da capacidade de refino do país. Na primeira fase, já em curso, estão à venda RLAM (BA), RNEST (PE), REFAP (RS) e REPAR (PR), a questão que se impôs é a seguinte: ao contrário de outros ativos que se configuram sob forma de empresas subsidiárias, o parque de refino da Petrobras é parte integrante da empresa-matriz. Sendo assim, para se desfazer deles e contornar a decisão do Supremo, a Petrobras criará oito novas empresas subsidiárias que possam absorver os ativos de modo a viabilizar a desestatização. Em última instância, trata-se de uma operação jurídico-econômica que busca contornar pela trilha de menor resistência a sistemática das privatizações.
O governo indicou que em breve deve publicizar seu novo projeto de aceleração das privatizações (fast-track). O projeto deve propor que se pulem etapas internas no processo de desestatizações. Até 2019, para que um ativo da União fosse posto à venda era preciso que ele passasse pela Secretaria Especial do Programa de Parcerias de Investimentos, e pelo Conselho de PPI, ambos ligados à Casa Civil, para que então fosse encaminhado para a Secretaria Especial de Desestatização, Desinvestimentos e Mercado, esta ligada ao Ministério da Economia, que, por seu turno, consolida o Programa Nacional de Desestatização (PND). De acordo com o novo projeto será possível incluir uma estatal direto no PND, sem as etapas anteriores. O primeiro passo para essa mudança já foi dado nesse início de 2020, com a transferência do PPI para o Ministério da Economia. Além disso, o governo pretende consolidar a listagem de todas as empresas que devem ser privatizadas até 2022, a fim de negociar com o Congresso uma autorização única para a venda de todo esse bloco de ativos, exceto para estatais cuja venda precise de emenda constitucional ou projeto de lei específico. Trata-se da negociação de um salvo conduto para uma privatização quase irrestrita.
Nesse início de ano, o Secretário de Desestatização, Desinvestimentos e Mercado tem participado de diversas atividades do mercado financeiro para apresentar um cronograma das próximas privatizações, conforme o calendário abaixo. Em 2020 a “jóia da coroa” das privatizações deve ser o grupo Eletrobras.

Calendário das privatizações
Previsão de vendaAtivo
Agosto de 2020ABGF
Outubro de 2020Emgea
Dezembro de 2020Casa da Moeda do Brasil
Janeiro de 2021Nuclep
Fevereiro de 2021Ceitec
Abril de 2021Ceagesp
Junho de 2021Serpro
Junho de 2021Codesp
Julho de 2021CTBU
Julho de 2021Trensurb
Julho de 2021Telebras
Dezembro de 2021Correios
Janeiro de 2022EBC
Essas cinco medidas, quando avaliadas separadamente, parecem ser setoriais e/ou pontuais. No entanto, quando observadas em conjunto podem traduzir uma nova estratégia de desestatizações e desinvestimentos que acarretará grande impacto sobre o arranjo econômico-institucional que colocou o Estado, as empresas estatais e o investimento público como importantes atores do desenvolvimento econômico do país.
William Nozaki é professor de ciência política e economia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e diretor-técnico do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás e Biocombustíveis.

O Observatório da Economia Contemporânea tem como foco a discussão da economia nas suas várias dimensões; estrutural e conjuntural, empírica e teórica, internacional e doméstica. Sua ênfase, porém, será na política econômica, com acompanhamento aprofundado da conjuntura internacional e da economia brasileira no governo Bolsonaro. Fazem parte do Observatório, economistas e cientistas sociais, professores e pesquisadores de diversas instituições, listados a seguir: Alex Wilhans, Alexandre Barbosa, André Calixtre, André Biancarelli, Angelo Del Vecchio, Antonio Correa de Lacerda, Bruno De Conti, Carolina Baltar, Claudio Amitrano, Claudio Puty, Clelio Campolina, Clemente Ganz Lúcio, Cristina Penido, Daniela Prates, David Kupfer, Denis Maracci Gimenez, Elias Jabbour, Ernani Torres, Esther Bermeguy, Esther Dweck, Fabio Terra, Fernando Sarti, Giorgio Romano, Guilherme Magacho, Guilherme Mello, Isabela Nogueira de Moraes, Ítalo Pedrosa, João Romero, Jorge Abrahão, José Celso Cardoso, José Dari Krein, Luiz Fernando de Paula, Luiz Gonzaga Belluzzo, Marcelo Manzano, Marcelo Miterhof, Marcos Costa Lima, Marta Castilho, Maryse Farhi, Nelson Barbosa, Paulo Nogueira Batista Jr., Pedro Barros, Ricardo Carneiro, Tânia Bacelar e William Nozaki.
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O PÓS-GUERRA IMPERIAL

Em nome do “destino manifesto”

por Maurice Lemoine
1 de Maio de 2003
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Desde o século 19, em nome do “progresso” e da “democracia” ou das “obrigações internacionais”, forças militares e econômicas dos EUA interviram em países latino-americanos, quando não usurparam território, garantindo seu controle do continente.Maurice Lemoine
No dia 22 de fevereiro de 1927, data do aniversário de George Washington, o embaixador dos Estados Unidos na França, Myron Herrick, reuniu num banquete, em Paris, os representantes diplomáticos dos países latino-americanos membros da União Panamericana. “Os Estados Unidos não cobiçam terras”, declarou em seu speech. “Não desejam novos territórios. Como é do conhecimento de todas as pessoas bem informadas, os Estados Unidos recusaram durante os últimos quarenta anos, de forma constante e deliberada, ocasiões freqüentes e fáceis de expandir seus domínios. Aqueles que nos acusam de propósitos imperialistas ignoram os fatos e não estão sendo sinceros1.” Com a memória sem dúvida embotada pelos vinhos e jóias da Cidade Luz, ele esquecia deliberadamente o México desmembrado, Cuba acorrentada, o Haiti e a República Dominicana sob controle, o Panamá arrancado da Colômbia, a invasão da Nicarágua, a anexação das Filipinas…
No ano de 1823, em sua mensagem ao Congresso, o presidente norte-americano James Monroe lançou a doutrina que iria levar seu nome. Enquanto o império ibérico desmoronava, despertando certos apetites britânicos, Monroe recusava toda e qualquer intervenção européia em assuntos das Américas. Essa atitude poderia ser considerada vantajosa se, sob o pretexto de lutar contra o colonialismo externo, os Estados Unidos já não estivessem, naquela época, orientando sua política externa para a constituição de um bloco continental a partir do qual pretendiam instaurar sua dominação.
A política do big stick
Chile, Bolívia, Equador, Nova Granada (Colômbia) e Peru se reunirem em Lima, em 1847, para examinar os problemas criados pelo intervencionismo norte-americano
Sem se preocupar muito com a credibilidade de suas justificativas, os Estados Unidos efetuaram uma intervenção militar em Porto Rico, em 1824, na Argentina, em 1831, no México, em 1845 e 1847, na Nicarágua, em 1857, e, em 1860, na província do Panamá e novamente na Nicarágua. A ponto de levar os governos do Chile, da Bolívia, do Equador, de Nova Granada (Colômbia) e do Peru a se reunirem em Lima, em 1847, para examinar os problemas criados por esse intervencionismo. No ano seguinte, 1848, a guerra contra o México justificaria suas preocupações: do Texas à Califórnia, os Estados Unidos anexaram a metade do território do país vizinho.
Terminada a Guerra da Secessão, os Estados Unidos da América do Norte perceberam a enorme força que detinham. A partir de 1880, após terminar a conquista do Oeste, essa força virou-se resolutamente na direção Sul. Durante a presidência do general Grant (1869-1877), a teoria do Destino Manifesto expôs cruamente o projeto dos Estados Unidos: o controle total do continente. Isto, logicamente, invocando sempre a mística da “defesa da democracia”. Mas foi com a política do big stick (porrete) e o envio dos marines (fuzileiros navais) que a puseram em prática. A essas intervenções militares pontuais, sucederam-se invasões que culminaram com a criação de protetorados.
A “independência” cubana
Durante a presidência do general Grant (1869-1877), a teoria do Destino Manifesto expôs cruamente o projeto dos Estados Unidos: o controle total do continente
Ainda sob dominação espanhola, quando as outras colônias americanas já haviam se tornado independentes, Cuba revoltou-se. A partir de 1895, José Martí lidera uma segunda guerra da independência. No dia 15 de fevereiro de 1898, em condições misteriosas, o encouraçado norte-americano US Maine explodiu no porto de Havana. Tomando esse incidente por pretexto, o presidente William McKinley declarou guerra contra a Espanha. Vencendo facilmente as tropas ibéricas após uma “magnífica guerrinha”, como gostava de chamá-la Theodore Roosevelt, as forças armadas norte-americanas tomaram Porto Rico2. Por meio do Tratado de Paris, de 10 de dezembro de 1898, a Espanha renunciaria à soberania de Cuba e das Filipinas.
Sob pressão da ocupação militar, Cuba “libertada” teve que aceitar que se anexasse um apêndice à sua Constituição, a Emenda Platt, votada pelo Senador norte-americano em 1901. Em função dessa emenda, Havana teria que aceitar um direito de intervenção dos Estados Unidos para “preservar a independência cubana” (sic) e manter um governo que protegesse “a vida, a propriedade e as liberdades individuais”. “Com o objetivo de que os Estados Unidos tenham as condições desejadas para manter a independência de Cuba e proteger seu povo, assim como para sua própria defesa”, prossegue a explicação do documento, “o governo de Cuba venderá ou alugará aos Estados Unidos o território necessário para a instalação de depósitos de carvão ou bases navais em pontos determinados (…).” Foi assim que nasceu a base de Gunatánamo3.
A ilha perdeu a independência antes mesmo de a ter conquistado. Intrometendo-se em sua política doméstica, em suas instituições, em seu sistema eleitoral e em seu regime fiscal, os Estados Unidos fizeram intervenções militares em Cuba nos anos de 1906, 1912 e 1917. Protetorado norte-americano até 1934, Cuba continuaria, na seqüência, dominada por governos sem poder real.
Poder internacional de polícia
Em função da Emenda Platt, Havana teve que aceitar um direito de intervenção dos Estados Unidos “preservar a independência cubana”
“Um persistente comportamento ruim, ou uma impotência que resulte numa negligência generalizada dos vínculos adequados a uma sociedade civilizada, podem eventualmente tornar necessária – na América como em qualquer outro lugar – uma intervenção por parte de uma nação civilizada. No hemisfério ocidental, a adesão dos Estados Unidos à doutrina Monroe pode forçá-los, nos casos flagrantes em que se depararem com tais comportamentos ruins, ou com tal impotência, a exercer, por mais que lhes repugne fazê-lo, um poder internacional de polícia”. Eleito presidente em 1903, Theodore Roosevelt lançou essa advertência como “corolário da doutrina Monroe.”
Para forçar os países latino-americanos a cumprirem suas “obrigações internacionais” e a “justiça para com os estrangeiros” (leia-se: pagar as dívidas para com as multinacionais emergentes) e para “trazer o progresso” e a “democracia” aos “povos atrasados”, os marines desembarcariam no México, na Guatemala, na Nicarágua, na Colômbia e no Equador. Menos hipócrita, o presidente Taft declararia, em 1912: “Todo o hemisfério ocidental nos pertencerá, de fato, devido à superioridade de nossa raça, pois moralmente já nos pertence.”
Sem a aparência de uma conquista territorial nem a de uma guerra declarada, o status de uma república latino-americana independente tornou-se inferior ao de um simples Estado norte-americano, no qual a intervenção do governo federal não pode ocorrer senão em casos muito específicos e deve ter a autorização do Congresso4. A defesa da soberania nacional tornou-se uma rebelião contra a potência que se arrogou o protetorado dessas repúblicas – e é esmagada a ferro e fogo em proveito de interesses influentes, e não dos da civilização.
Intervenção sem qualquer controle
Sem a aparência de uma conquista territorial, o status de uma república latino-americana independente tornou-se inferior ao de um simples Estado norte-americano
Desde que conseguiu sua primeira concessão da Costa Rica, em 1878, a United Fruit Company (UFCo.) construiu um império bananeiro no litoral atlântico da América Central (assim como na Colômbia e na Venezuela). Seus milhões de hectares e suas propriedades constituem autênticos reinos independentes. Trata-se da defesa de interesses. Sob os auspícios daquilo que denomina good will (boa vontade), o Tio Sam – uma enorme cartola, colete estrelado e calças listradas, como a bandeira – intervém diplomática e militarmente, usando de sua própria autoridade, sem qualquer tipo de controle, nas questões internas das repúblicas latino-americanas.
É verdade que se trata de nações turbulentas, que muitas vezes subsistem num estado de anarquia crônica e de desordem financeira. Mas existem alguns precedentes – o etnocídio dos “peles-vermelhas” e a Guerra da Secessão, por exemplo – que não justificam que o grande vizinho do Norte faça pose de dar lições. Só que, na época, além da defesa de seus interesses econômicos na região, ele pretendia também garantir a posse de um futuro canal que ligaria o Atlântico ao Pacífico.
Empréstimos por controle financeiro
Na Nicarágua a “diplomacia do dólar” exerceu seu controle de forma mais imperial para garantir a posse do futuro canal interoceânico
Como a Colômbia os fizesse esperar demais para consentir nas condições que propunham para a cessão dessa futura via hidroviária na província do Panamá – “por cem anos” – os Estados Unidos incentivaram a secessão, em 1903. Em troca de 10 milhões de dólares, o Tratado Hay Brunau-Varilla, de 18 de novembro desse ano, concedeu-lhes o direito de uso perpétuo do canal e de uma zona de oito quilômetros em cada margem, assim como a soberania total desse território. Um tratado de aliança, assinado em 1926, agravou a submissão. Seu Artigo 6 confere a Washington direitos especiais em tempo de guerra, transformando o Panamá, do ponto de vista militar, num novo Estado da União.
No entanto, foi na Nicarágua que a “diplomacia do dólar” exerceu seu controle de forma mais imperial. Também nesse país, tratava-se de garantir a posse do futuro canal interoceânico, cujo traçado definitivo ainda não fora determinado. Após um primeiro desembarque em 1853, para “proteger a vida e os interesses dos cidadãos norte-americanos”, os fuzileiros navais reapareceriam em 1912 para quebrar a resistência dos liberais, que se recusavam a aceitar o acordo pelo qual os Estados Unidos concederiam um empréstimo mediante a condição de estabelecerem o controle financeiro da Nicarágua. Entronado no poder, o presidente Adolfo Díaz concordou com o famoso empréstimo, repassando em garantia as receitas alfandegárias e aceitando um administrador-geral aduaneiro norte-americano, nomeado pelos banqueiros de Nova York e com o aval do Departamento de Estado. É desse ano que data a instalação em Manágua de uma guarnição norte-americana que ali permaneceria por treze anos, até 1925. Durante esse período, o Tratado Bryan-Chamorro concedeu aos Estados Unidos direitos exclusivos sobre a construção do eterno canal.
Os marines entraram de novo em cena em 1927, depois que o conservador Emiliano Chamorro, seu protegido, retomou o poder por meio de um golpe de Estado. Só se retiraram em 1932, após uma longa luta desigual com os outlaws do “exercitozinho louco” de Augusto César Sandino. Nesse período, os Estados Unidos criaram na Nicarágua uma Guardia Nacional cujo jefe director foi um marine até 1932, antes que fosse empossado o general Anastásio Tacho Somoza.
A boa vizinhança de Roosevelt
Em Honduras, os Estados Unidos intervieram em 1903, 1905, 1919 e 1924 para “restabelecer a ordem” (principalmente a da United Fruit e de outras empresas)
Em Honduras, os Estados Unidos intervieram em 1903, 1905, 1919 e 1924 para “restabelecer a ordem” (principalmente a da United Fruit e de outras empresas que exploravam, em seu território, as minas e as florestas). Em 1915, a grande democracia norte-americana também estrangulou, silenciosamente, a pequena República do Haiti. Desembarcando em Porto Príncipe à frente de uma força expedicionária, o almirante William B. Caperton impôs ao governo uma convenção cujas cláusulas – aparentemente legais e voluntariamente consentidas – depositavam a administração civil e militar, as finanças, as alfândegas e o banco do Estado (substituído pelo National City Bank) em mãos norte-americanas. Para quebrar a resistência, proclamou a lei marcial sobre toda a extensão do território. A mesma lei marcial foi aplicada na República Dominicana, onde a Convenção de 8 de fevereiro de 1907 permitiu aos invasores administrarem as alfândegas, distribuindo a receita entre credores estrangeiros.
Em 1934, o democrata Franklin D. Roosevelt substituiu essa política “do porrete” pela da good neighbourhood (boa vizinhança). A Conferência para a manutenção da paz (Buenos Aires, 1936) e a VIII Conferência dos Estados Americanos (Lima, 1938) iriam reafirmar a soberania absoluta de cada país. Porém, durante a fase dos protetorados, os Estados Unidos conseguiram organizar regimes autoritários estáveis, baseados nas forças armadas locais, dedicadas à defesa de seus interesses. Assim, a boa vizinhança se traduziria pelo apoio aos ditadores Rafael Leónidas Trujillo, na República Dominicana, Juan Vicente Gómez, na Venezuela, Jorge Ubico, na Guatemala, Tiburcio Carias, em Honduras, Fulgencio Batista, em Cuba, bem como à dinastia Somoza na Nicarágua.
(Trad.: Jô Amado)
1 – Ler, de Louis Guilaine, L?Amérique latine et l?impérialisme américain, ed. Armand Colin, Paris, 1928.
2 – A ilha ficou submetida a um regime vagamente autônomo, sob a autoridade de um governador norte-americano. Em 1917, após vários anos de protestos por parte de dirigentes porto-riquenhos junto ao Congresso, foi outorgada a cidadania a todos os porto-riquenhos que a desejassem. Em 1952, a ilha
Maurice Lemoine é jornalista e autor de “Cinq Cubains à Miami (Cinco cubanos em Miami)”, Dom Quichotte, Paris , 2010.